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Minha Invisibilidade Cinematográfica

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Óbvia, pela situação de apenas cinéfilo e sonhador da realização cinematográfica, com ela embarquei nos verdes anos na promessa do Cinema Novo, mais especificamente na oportunidade oferecida por um festival a ele associado, o Festival de Cinema Amador JB/Mesbla. Os anos eram os de chumbo, de assumida ditadura militar. 
O citado movimento propunha descolonização linguística, independência e democracia na produção de filmes, luta mercadológica contra o oligopólio estrangeiro da exibição cinematográfica, e o festival também representava uma militância estético-contestatória para toda uma geração universitária – geração de classe média – reprimida nas suas possibilidades expressivas e laborais. Vivia eu, na época, uma situação de falência familiar, sem condições de ingressar na universidade, embora viesse a me tornar seu passeador, e também autodidata. Era empurrado, portanto, por sobrevivência, para o proletariado, vindo mesmo a exercer um trabalho de “pouca qualificação” no parque siderúrgico capixaba.
Ramon Alvarado quando criança, vestindo camisa social de mangas curtas, na varanda da casa de seus pais em Vitória (ES), com plantas ao seu lado.  Prédios ao fundo, entre eles o Palácio Anchieta.
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Ramon Alvarado na varanda da casa de seus pais, em Vitória, na década de 1950. Ao fundo vê-se o Palácio Anchieta.
O meu interesse pela profissão de cinema surgiu na infância mesmo, brincando com um rolo de 16 mm que tínhamos em casa, um registro da nossa família (sem a minha presença, pois só nasci dez anos depois) e da cidade de Vitória, registro feito pelo meu pai em meados da década de 1930. O velho era imigrante espanhol, técnico especializado em equipamentos de raios-X e abraçava ideias anarquistas.
Na época anteriormente citada, eu participava de toda a movimentação da esquerda, já o fazendo no governo João Goulart, como estudante secundarista. Eram tendências político-ideológicas diversas, até em choque. Elas disputavam a “vanguarda”, destacando-se neste processo o clandestino Partido Comunista Brasileiro, o partidão, para cuja base artístico-literária (os “trabalhadores intelectuais”) fui atraído, livre de “carteirinha”, isto é, sem participação orgânica.
"O meu interesse pela profissão de cinema surgiu na infância mesmo, brincando com um rolo de 16 mm que tínhamos em casa, um registro da nossa família (sem a minha presença, pois só nasci dez anos depois) e da cidade de Vitória, registro feito pelo meu pai em meados da década de 1930."
Gif animado. Trecho do filme "Um belo dia", com imagens de Vitória entre os anos 1935 e 1938, filmadas por Luiz Gonzáles Batán e reunidas por seu filho Ramon Alvarado. Na primeira cena uma criança anda de bicicleta na rua; em seguida, um barco passa pela baía de Vitória.
Tal base, com apoio principal da UFES (reitoria), promovia palestras, seminários, exposições de pintura, apresentações musicais e teatrais, e muito contribuiu para a refundação de um cineclube, o Alvorada, do qual me tornei sócio de “carteirinha”, embora esta nem existisse fisicamente. No Alvorada, após conhecer o advogado, fotógrafo amador e cinéfilo Rubens de Freitas Rocha, que possuía uma câmera 16 mm e também alguns rolos virgens de película, encontrei as condições para a minha primeira experiência cinematográfica, o curta-metragem, mudo, ficcional, Indecisão, que naturalmente refletiu as influências que eu recebia. Tratava o filme de um tema caro aos socialistas, a luta de classes, e também da crise de identidade da classe média, crise esta vivenciada por uma estudante universitária dividida entre dois cortejadores, um burguês e um proletário.
Sem alcançar a mostra competitiva do II Festival JB/Mesbla (1966) – uma seleção de uns 20 títulos num total de 200 outros (ou mais) inscritos –, desclassificado talvez pela característica também experimental da fotografia, Indecisão foi visto por um público muito restrito em Vitória, em duas exibições espaçadas no tempo. Na primeira, que dividiu a plateia no que tange à apreciação, Paulo Torre – presente e considerando antológica a sequência do sonho contida no filme – despertou para a realização cinematográfica.
Buscando melhor sorte numa próxima edição do JB/Mesbla, passei a estudar fotografia, a fim de exercê-la eu mesmo (Rubens de Freitas Rocha, fotógrafo de Indecisão, era um chefe de família com tempo mínimo para as filmagens), e tendo algumas economias, comprei a câmera do meu consócio cineclubista. Foi o suficiente para em menos de dois anos, com a minha fotografia e cessão do uso da câmera, serem rodados 12 filmes amadores na capital capixaba, filmes que, além da minha direção, tiveram a de Paulo Torre, Antônio Carlos Neves (Toninho) e Luiz Eduardo Lages. Toninho, estudante de cinema  da Universidade de Brasília, com o fechamento desta pelo regime militar, voltou para Vitória querendo fazer certo curta-metragem, mas acabou concluindo outro.
Tratando temas mais diretamente políticos (a repressão policial ao movimento estudantil), Toninho logrou, com seus trabalho Alto a la Agresión, a exibição finalista no III Festival Amador (1967), no Cine Paissandu, sem ter conquistado prêmios. Faltando uma semana para o encerramento do prazo de inscrição no dito certame, para não ficar ausente o meu lado realizador, resolvera rodar um filme, O Pêndulo, com temática também da classe média. Concluindo-o a tempo, inscrevendo-o, o resultado que obtive foi a minha segunda desclassificação, a qual me levou a achar que existia preferência temática por parte da “comissão selecionadora”. Mas a recusa de O Pêndulo poderia ter sido também consequência da pressa com que ele foi realizado, da escassez dos seus recursos ou mesmo do seu não entendimento pela comissão citada.
Câmera Canon Scoopic 16mm sobre tecido estampado nas cores azul e bege e tampa de lente ao seu lado. Fotógrafo(a) não identificado(a). Câmera Canon Scoopic 16mm sobre tecido estampado nas cores azul e bege e tampa de lente ao seu lado. Fotógrafo(a) não identificado(a).
Difícil precisar. O fato é que o ocorrido é natural em um festival de cinema, faz parte das suas regras. Inscrever um filme num festival é como jogar na loteria.
Como se sabe, os festivais foram mundialmente criados para alavancar produções cinematográficas, aumentar também a frequência aos cinemas, compondo uma estratégia de marketing. Tiveram sempre caráter complementar, já que o mercado (a soma das casas) existe autonomamente. Premiação em festival foi também a estratégia dos membros do cinema novo tão logo perceberam a resistência dos exibidores oligopolistas a seus filmes. Um troféu quebrava portanto aquela resistência, pois trazia, para os ditos exibidores, uma expectativa de maior público e renda.

Ramon Alvarado fotografado durante as filmagens do documentário Floresta da Tijuca (1971)
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Ramon Alvarado no set do curta-metragem Floresta da Tijuca (1980). Crédito: Newton Medeiros.
Com este quadro do cinema brasileiro foi que, em 1968, me mudei para o Rio de Janeiro. Sem mais sonhar com festivais, apenas buscar – na bitola profissional de 35mm – trabalho básico que me garantisse a sobrevivência. E fui “premiado” porque era significativa a produção cinematográfica brasileira naquela época e grande era a demanda pelo braço humano cinematográfico. Nesta condição laboral, por aproximadamente 20 anos, fiz verdadeira carreira e, apesar de haver reprimido o meu lado realizador, com a abertura de uma janela para a realização e exibição de filmes de curta-metragem (lei de Classificação Especial do INC), reacendeu-se aquele lado, isto é, voltei a sonhar. Criou-se uma pequena reserva de mercado que, no entanto, não era de usufruto automático pelos produtores independentes. Estes precisavam de uma licença (certificado), resultante por sua vez de uma seleção de “qualidade”, feita por comissão. Percebi logo na lei citada a absorção dos critérios festivalescos para que se regulamentasse um fomento pretensamente democrático. Seria válida talvez a dita seleção se, em arte e cultura, a “qualidade” não fosse uma determinação subjetiva, não tivesse um valor relativo, pudesse ser medida objetivamente, resultasse, em última instância, da relação direta obra/público. Desnecessário dizer que voltei a ser desclassificado, que me dei mal investindo economias pessoais na produção de curtas-metragens.
Tal só não ocorreu em duas oportunidades, quando, criando-se a Embrafilme e uma lei de obrigatoriedade de exibição de um curta-metragem nacional na programação de um longa-metragem estrangeiro (lei do CONCINE, de efêmera vigência), e tendo-se também que aumentar a produção de curtas, para se poder cumprir a lei, a seleção da “qualidade” foi posta de lado, exigindo-se somente que os filmes não veiculassem matéria publicitária. O momento me favorecia também por ter ao meu dispor (fora outros investimentos) a câmera Arriflex 35mm do cineasta e amigo Rubem Corveto Azeredo, que fora ator do cinema amador capixaba e, em 1968, partira também para o Rio de Janeiro. Fechada a estatal, a “proteção ao nosso cinema” passou a se fazer então por outras vias: renúncia fiscal e editais públicos.
"Com este quadro do cinema brasileiro foi que, em 1968, me mudei para o Rio de Janeiro. Sem mais sonhar com festivais, apenas buscar – na bitola profissional de 35mm – trabalho básico que me garantisse a sobrevivência. E fui “premiado” porque era significativa a produção cinematográfica brasileira naquela época e grande era a demanda pelo braço humano cinematográfico."
Recorte de negativo de imagem no qual o cineasta Ramon Alvarado, em set de filmagem, está segurando uma claquete na qual lê-se "Seara Filmes" e informações sobre a cena filmada.
Com as novas disposições, impôs-se mais uma vez o crivo “qualitativo”. Alguns são premiados,  ao mesmo tempo em que se forma uma massa de excluídos, verdadeiro gueto. Continua-se nada se fazendo contra a ocupação estrangeira do nosso mercado exibidor e não se vê que já despontam, resistindo a dita ocupação, formas alternativas (organizativas populares) de exibição que poderão vir a ser fonte de emprego cinematográfico, como de renda para produtores verdadeiramente independentes. Nunca me vi na relação dos selecionados em editais e, a partir de certo ponto da minha vida, deixei de participar daqueles, como já havia deixado de realizar curtas.
A minha invisibilidade hoje é absoluta, radical, intencional, com toque de magia, na verdade uma inovação tecnológica aplicada em espaços abertos, que permite, numa tela onde está sendo projetado, o desaparecimento de um filme, como também o seu reaparecimento. Isso, a exploração dessa técnica, correspondendo à compra do bilhete dos cinemas fechados, tem valor econômico, de geração de renda, principalmente para a economia popular. É também programática hoje a minha invisibilidade, faz parte de uma militância libertária que pretende reunir oprimidos e excluídos da sétima arte para uma grande travessia, ao cabo da qual, todos poderão ver (se Deus quiser) a mesma Terra avistada por Milkau no final do romance Canaã, de Graça Aranha.
Cineasta Ramon Alvarado. Foto de Felipe Amarelo/ABD Capixaba.
Cineasta e diretor de fotografia. Iniciou sua trajetória no cinema na década de 1960, em Vitória, atuando no chamado Ciclo de Cinema Amador Capixaba. Nos anos 1970 mudou-se para o Rio de Janeiro, passando a atuar continuamente como técnico de cinema e diretor de curtas-metragens. Recebeu o prêmio de Melhor Fotografia no IV Festival JB/Mesbla, em 1968, pelo filme Veia Partida.