L

Festa, cinema e tempo transmutado (sobre O Mastro do Bino Santo)

Tempo estimado de leitura: 10 min
A questão da memória do cinema brasileiro tem, além da óbvia importância direta da conservação dos materiais, uma característica crucial de sublinhar a face dinâmica dos processos históricos. A recuperação e o gesto de recolocar em circulação a filmografia do pioneiro do cinema capixaba Ramon Alvarado não só recupera nossa memória como projeta e embasa o futuro de nosso cinema. Ter acesso aos filmes em boas condições é poder verificar no passado pistas para os caminhos que podemos tomar no futuro.
Assim como o cinema independente da geração de Alvarado era chamado “amador”, o cinema brasileiro de mais denso valor cultural no século XXI também tem essa característica. Nesse século – que é brilhante do ponto de vista criativo –, nossos filmes foram intensamente “amadores” – em oposição a um modelo industrial, padronizado, inflado e impessoal. Em pouco tempo, vimos imagens de várias regiões do Brasil refazerem as formas de se produzir filmes, e a formação de um conjunto de estéticas que não desejam imprimir na imagem a marca do “profissional” como regra. O que quero dizer é que o cinema dos pioneiros de nosso estado (e também de outros) lançavam as sementes que só foram frutificar agora, em termos de estética e modos de produção, apostando na maneira independente ou “amadora” como situação favorável para exploração criativa ampla, em termos de técnica e linguagem.
O exemplo de O mastro do Bino Santo (1971) é basilar. Em princípio, a aparência do simples gesto de etnografar uma festa do folclore capixaba parece sugerir que o discurso fílmico não ultrapasse a dimensão do registro. Temos ali as paisagens do município da Serra, há cinquenta anos, e as imagens de uma festa que ainda hoje permanece viva nos finais do mês de dezembro. Uma narração nos lê um texto com informações sobre o local e sobre o tema, como era comum na produção documental da época.
Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Dois homens de chapéu tocam tambor.
1
Cena do filme O Mastro do Bino Santo (1971). Créditos: Ramon Alvarado.
Porém, a aparente espontaneidade de filmagem esconde um jogo de associações bastante sugestivo em relação aos significados da obra. Talvez seja importante lembrar: este é um filme realizado no auge do AI-5 e da repressão dos aparatos civis-militares que mataram e torturaram aos milhares, além de tolher intensamente a produção cultural da época, espalhando medo e terror. Era concretamente perigoso filmar. E Alvarado já tinha demonstrado em trabalhos anteriores sua consciência política. Portanto, a forma do filme etnográfico é também um “álibi” para que sua postura crítica possa refletir sobre o mundo a sua volta sem parecer estar falando de coisas “atuais” ou “subversivas”.
Algo que se destaca bastante na estrutura geral do curta é a inserção de fotos antigas e ilustrações, que remetem tanto à época da escravidão, quanto trazem à vista a permanência do legado e das formas escravistas. As fotos e ilustrações em preto e branco cortam o fluxo das imagens atuais do filme, marcando, ao mesmo tempo, interrupção e continuidade. Ao registro da festa são associadas imagens de outro tempo e de outros espaços, demarcando uma dinâmica associativa que não revela totalmente seus sentidos mas sugere esteticamente relações complexas. Há uma ligação tanto com aquele outro tempo, da escravidão, quanto com as formas de trabalho contemporâneas ao momento, como no Porto de Tubarão, recém inaugurado. Quando a narração fala de um, mostra-se o outro, e vice versa. A montagem opera uma espécie de avanço (ou de atraso) estratégico – um pouco como o que em percussão se chama de suingue, essa forma sutil de manter os ritmos operando microvariações sensíveis de tempo e andamento.
"Ao registro da festa são associadas imagens de outro tempo e de outros espaços, demarcando uma dinâmica associativa que não revela totalmente seus sentidos mas sugere esteticamente relações complexas."
Num momento histórico de grande estímulo a um pensamento desenvolvimentista, uma remissão crítica ao trabalho no Porto merece menção e destaque; o apontamento de uma continuidade dos processos históricos de exploração e dos processos contemporâneos do trabalho industrial só pode ser resultado de uma sensibilidade aguda e consciente tanto de seu tempo, quanto da formação do nosso país. E o faz através de um desenho do filme onde os tempos se confundem, onde a linearidade da retórica do progresso não se verifica. Onde está o passado? A escravidão acabou? São perguntas que ficam no ar, sugeridas, quando vemos o tratamento análogo dado às inserções de imagens da escravidão e dos trabalhadores do porto, atuais à feitura do filme.
Neste sentido, o que atesta a coerência de O mastro do Bino Santo é que este tipo de manobra associativa é totalmente relacionado à festa que louva o santo negro São Benedito. Esses ritos têm uma formação extremamente paradoxal cuja complexidade o filme consegue em menos de dez minutos abarcar. A festa se forma como uma oportunidade dos negros escravizados fazerem duas coisas principais: registrar sua história e viver, naqueles instantes, a forma de um “outro mundo” regido por outras regras que não a do sofrimento e da exploração. A festa é em si mesma uma espécie de etnografia, ou estudo, ou registro de fatos históricos, colocados sob uma abordagem extática, dinâmica e opaca. Pois assim foi e é a forma das culturas negras e indígenas sobreviverem à hidra genocida da monocultura do progresso desenvolvimentista. Esses povos desenvolveram sofisticadas táticas de negociação, associação, composição heterogênea, e com isso mantiveram vivas algumas de suas mais pujantes práticas comunitárias. E essa “preservação” se deu e se dá justamente por um processo dinâmico, misturada ao presente e às diferentes conjunturas, numa forma de adição permanente que se impôs diante da ameaça constante de subtração, produzindo materiais intensamente polissêmicos. Não por acaso, a última imagem do filme é a da igreja, no fim do dia, enegrecida.
Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Pessoas seguram o barco Palermo na festa de São Benedito. Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Pessoas juntas em meio à festa; um homem com um cigarro, crianças e adultos ao fundo e, em primeiro plano, braços de um homem segurando um instrumento semelhante a uma casaca ou reco-reco. Guarda-chuva vermelho ao fundo da imagem.
No campo do registro está lá o navio negreiro, sobre um carro de boi, está lá o mastro, onde negros naufragados teriam se apoiado e se salvado, além da histórica ligação do santo protetor dos negros com a Itália, que teria sido sua última morada. O mastro significa e celebra a força da população negra sobrevivente e suas formas de seguir, apesar de todo esforço que foi e é feito para sua aniquilação. E este “outro mundo” que menciono acima é justamente a festa, a música, em sua intensidade própria e intensamente coletiva. É muito marcante quando Alvarado com sua câmera certeira filma a dança em júbilo de um homem negro, em êxtase, sob parca luz, que não tem um dos braços. Esse cruzamento entre dor e júbilo  sintetiza algo de fundante em boa parte das nossas mais ricas manifestações culturais. Não se trata de um apagamento da história dolorida, mas uma remissão a ela ligada a táticas de transmutação. A festa é o lugar justamente desse processo, de reviver o trauma e transmutá-lo, ao mesmo tempo, principalmente através da intensidade liberadora do som e da dança.

"O mastro significa e celebra a força da população negra sobrevivente e suas formas de seguir, apesar de todo esforço que foi e é feito para sua aniquilação. E este “outro mundo” que menciono acima é justamente a festa, a música, em sua intensidade própria e intensamente coletiva."
Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Mulheres de vestido estampado seguram a corda do barco. Vemos seus braços, suas mãos e seus membros inferiores, mas não seus rostos.
A circularidade indígena do som do congo atesta a característica vibrátil da festa. Quem já foi a uma festa de congo sentiu que parte do trabalho dos instrumentos é justamente produzir esse espaço, esse perímetro de vibrações produzido principalmente pelas percussões, onde os tempos se confundem, se associam, retornam e se diferenciam, indefinidamente. E é esse tipo de estrutura dinâmica, espiralar, que interessa ao documentário de Ramon Alvarado. No filme, a festa é um corpo vivo, composto por uma coletividade, por pernas eventualmente sem rosto, por mãos, objetos, por um caldo de energia essencialmente comunitária que é justamente a arma histórica daqueles que foram excluídos. A forma da associação é uma estratégia de sobrevivência prática e também de investimento estético. Na festa – tanto quanto no filme – o tempo da escravidão ainda é agora, ele está aqui, acionado pela repetição hipnótica dos tambores. E o processo de revivê-lo trans-modificado pela imaginação histórica das gerações que sofreram é também a invenção de um modo de ocupar o espaço da cidade que afirma o contrário da exploração, que sublinha a abundância sensorial de se estar vivo, celebrada pelo canto e pela dança.
Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Mulher em primeiro plano segura um cajado e olha para a câmera; braços e troncos de homens ao fundo tocando seus tambores.
2
Cena do filme O Mastro do Bino Santo (1971). Créditos: Ramon Alvarado.
"No filme, a festa é um corpo vivo, composto por uma coletividade, por pernas eventualmente sem rosto, por mãos, objetos, por um caldo de energia essencialmente comunitária que é justamente a arma histórica daqueles que foram excluídos."
Cena do filme O Mastro do Bino Santo. Homem dançando com pessoas ao redor.
O processo do cortejo é uma afirmação pública, e uma espécie de prece material e concreta. A dignidade, a igualdade e a humanidade, na duração do festejo, não são um conceito mas uma prática, por isso a relevância renovada de rituais como esse. A permanência da exploração dos trabalhadores é motivo de reafirmação da importância da festa e de seu contraste com todo processo de violência dessa natureza. E a montagem do filme de Ramon refaz esta costura e contraste, reafirmando o procedimento que é o cerne da própria festa, de maneira sutil e afirmativa.
Portanto, a modernidade de nosso cinema ali chamado de “amador” é uma oportunidade de verificarmos a possibilidade de uma arte comprometida com seu território, sem que isso represente em nenhum grau um decréscimo de sua força estética ou imaginativa. Numa festa típica, o cinema encontra aqui maneiras de discutir os assuntos mais cruciais da cultura brasileira daquele momento (o desenvolvimentismo, a exploração do trabalho, o racismo estrutural, e as respostas dos explorados a estes processos) e sugerir uma ideia de tempo que não é a da linearidade inexorável do progresso. Assim como os toques do congo, temos aqui um temporalidade espiralada, onde os processos criam relações próprias, de retornos e diferença, onde épocas distintas mostram suas similitudes e contrastes, e onde ritmicamente podemos sentir e pensar sobre o que nós somos e sobre o que podemos ser, nem que seja num átimo de segundo na batida do tambor, ou num fotograma de um curta amador. Neste instante está contido o germe de uma abundância incontida, de uma alegria viva e consciente da dor, cuja energia necessariamente construirá, no seu tempo, uma vida renovada, extasiante e comunitária. E é realmente uma satisfação que hoje possamos vivenciar o contato com um filme que nos permita relembrar e reviver este amálgama, na plenitude de suas cores, sons e movimentos.
O autor do ensaio, Juliano Gomes. Fotógrafo(a) não identificado(a).
Juliano Gomes é crítico e professor. Co-editor da Revista Cinética, onde escreve desde 2010. Publicou na Film Quarterly, Filme&Cultura, Folha, Piauí e diversos catálogos de mostras e festivais. Foi júri do DocLisboa, Mostra Tiradentes, Cachoeira Doc e Fronteira. Foi do comitê de seleção do Sheffield Doc Fest. Lecionou na AIC-Rio. Escreve também sobre teatro, música e artes visuais. Mestre em Comunicação (UFRJ). Dirigiu com Léo Bittencourt os curtas "As Ondas" (2016) e "..." (2007).
juliano-gomes.com